A História está repleta de exemplos de eventos de grande porte que resultaram em tragédias. As épocas são distintas, mas o absurdo é verificarmos que muitas mortes e ferimentos ocorreram pela repetição de erros e em razão de problemas de segurança encontrados em eventos ocorridos em diferentes partes do mundo, ao longo dos anos. Veremos a seguir que importantes fatores levaram à morte mais de duzentos jovens na Boite Kiss em Santa Maria, em 2013, já haviam sido verificados no incêndio do teatro Iroquois em 1903, na cidade de Chicago. Mais de 100 anos após, problemas semelhantes ainda são causas de novas tragédias.
Antes de começarmos a analisar as tragédias relacionadas aos eventos de grande porte, é necessário que possamos abordar alguns conceitos e definições.
O que é um evento de grande porte? Na língua inglesa, encontramos a palavra “mass gathering” para se referir a esse tipo de evento. Não há um conceito fechado que diga que assim seriam chamados os eventos com um número mínimo de pessoas. Há na verdade dois fatores que precisam ser analisados. O primeiro diz respeito ao número de pessoas presentes, nesse aspecto tem sido comum a aceitação de que plateias e concentrações superiores a mil pessoas, para um determinado local, constituem-se em um evento de grande porte. Mas não é só isso. Há necessidade de verificarmos também qual será o espaço destinado a essas pessoas.
também bastante utilizada a ideia de que para cada metro quadrado, podemos ter cerca de 3 pessoas em pé, ou 1-2 sentadas. Eventos muito cheios, podem ter até 4 pessoas/ metro quadrado e em situações extremas, até 6 ou 7. Assim, se as mil pessoas de um evento estiverem espalhadas por uma área muito grande, o conceito de concentração de público fica perdida, portanto, deixa de existir a ideia, nesse caso, de um evento de grande porte. Como exemplo, temos as manifestações em via pública, onde podemos ter duas mil pessoas se dirigindo a um determinado local, mas enquanto não estão de fato concentradas, não temos ainda um evento de grande porte. Por outro lado, se temos um ambiente com capacidade reduzida, onde há uma concentração de 4 pessoas/ metro quadrado, ainda que não tenhamos mil pessoas, podemos ter uma situação de evento de grande porte. Uma danceteria com 600 pessoas em um espaço de 150 metros quadrados, pode ser considerado um evento de grande público.
É desta forma, que os órgãos de segurança fazem a estimativa de público em eventos. A partir do conhecimento das dimensões de determinada área, verifica-se a quantidade de área ocupada (que pode ser visualizada por imagens aéreas obtidas de helicóptero ou drones) e a partir do cálculo já referido acima, tem-se a estimativa de público.
Por que algumas estimativas são tão diferentes, dependendo de quem as realiza? Geralmente os organizadores informam um número inflacionado de público para valorizar o evento. Por outro lado, em eventos onde não há venda de ingressos, a estimativa passa a ser visual e, sobretudo em eventos noturnos, por vezes fica difícil definir se há uma concentração de 3 ou de 4 pessoas/metro quadrado. Ou seja, uma área de 20.000 metros quadrados, estando lotada, pode ter de 60.000-80.000 pessoas, conforme a análise do observador.
Contudo, a definição do que é ou não um evento de grande porte, para fins de segurança, deve ser particularizado conforme o local (cidade) onde o evento será realizado. Para grandes capitais, públicos de 1.000 pessoas podem ser facilmente controlados por diferentes técnicas e medidas de controle de multidões, enquanto para cidades de pequeno porte, públicos de 400 pessoas podem ser um grande desafio. Assim, cabe às secretarias de segurança estaduais e órgãos congêneres nos municípios, a definição do que constitui um evento de grande público e as medidas a serem tomadas nestas circunstâncias.
Assim, uma vez entendido o conceito de mass gathering, vamos tratar do conceito de mass casualty. Todo evento de grande porte, chamamos de mass gathering, mas apenas aqueles que resultam em grande número de mortos e/ou feridos, são chamados de mass casualty. Assim, todo mass casualty era inicialmente um mass gathering, mas o inverso não é verdadeiro. A tradução para mass casualty pode ser a de incidente com múltiplas vítimas. É importante, no entanto, que se conheça a nomenclatura em inglês, para estudos complementares, uma vez que a maioria dos artigos nesta área é escrita nesse idioma. Qualquer incidente com várias vítimas é um mass casualty. Nesse contexto, iremos apenas abordar aqueles de alguma forma decorrentes de eventos de grande público. Um exemplo de mass casualty foi o atentado terrorista à maratona de Boston em 2013, com três mortos e mais de 260 feridos.
Outro conceito que precisamos estabelecer é o da segurança. Em inglês, há dois tipos de segurança: Safety e Security. O conceito de safety está mais relacionado à prevenção de acidentes e primeiros socorros enquanto que security está mais ligado à segurança propriamente dita, no que diz respeito à proteção de pessoas, áreas e instalações. Os bombeiros e equipes de emergência cuidam do safety enquanto que a polícia, do security. Nesse curso, usaremos o termo segurança, tanto para incluir o safety quanto o security.
Há basicamente dois tipos de eventos de grande público. Os eletivos (programados previamente) e os espontâneos. Como exemplo de eventos eletivos, temos as competições esportivas, enquanto que os espontâneos podem ser exemplificados pelas manifestações de rua, como as verificadas em junho de 2013, que atraíram milhares de pessoas às ruas. O fato de serem espontâneas não significa que não possam ser monitoradas e controladas, de tal forma a proteger os manifestantes, agir nos termos da lei quando necessário, isolar e deter os baderneiros ou até mesmo criminosos que possam estar infiltrados e com base no trabalho de inteligência, poder estar sempre um passo a frente do que pretende ser realizado. Manifestações são demonstrações genuínas de contentamento ou de protesto, em democracias e de forma alguma devem ser impedidas. Contudo, devem ser realizadas de forma ordeira, pacífica e de acordo com as normas emanadas dos órgãos de segurança, de tal forma a não comprometer o direito da população de ir e vir (não bloqueando rodovias) bem como seguindo trajeto previamente acordado.
Diversos eventos de grande público resultaram em tragédias. Para estudo nesse curso, analisaremos alguns ocorridos desde o início do século XX, até os dias atuais.
Em 1903, na cidade de Chicago, USA, um luxuoso teatro, localizado em uma importante região da cidade, se preparava para uma apresentação de matinê, estava completamente lotado, na verdade estava superlotado, acima de sua capacidade estimada de público. A maioria das pessoas era composta por crianças.
Algum tempo antes da abertura do teatro, um graduado bombeiro da cidade resolveu fazer uma vistoria informal no estabelecimento e ficou realmente preocupado ao verificar que não havia condições mínimas de segurança, sobretudo voltadas para a prevenção e combate a incêndio. O bombeiro relatou suas observações para os seus superiores, mas nada foi feito e ele instruído a não se manifestar sobre o assunto, uma vez que havia um laudo assinado por um profissional da área atestando que o local era seguro. Os proprietários do teatro, inclusive, divulgaram que o estabelecimento possuía sistema antichamas, o que não era verdade.
O oficial do corpo de bombeiros de Chicago havia verificado, por exemplo, que não havia extintores, sistemas de extinção automáticos ou qualquer outro tipo de mecanismo voltado para o combate a incêndio, exceto, seis tubos de uma substância à época conhecida por “kilfyre”, que era composta essencialmente por bicarbonato de sódio e voltada para apagar pequenos focos de incêndio em chaminés domésticas.
O teatro possuía três andares, o térreo era onde também estava o palco e nos demais o acesso se dava por escadas. Em situações de emergência, quem estava nos andares superiores, necessitava descer para o térreo para então conseguir escapar.
Dentre as deficiências estruturais, não havia adequadas saídas de emergência, que eram confusas e mal sinalizadas. Durante as apresentações, portões de ferro eram utilizados para impedir que as pessoas pudessem ter acesso a diferentes áreas do teatro. As cortinas de asbesto não eram periodicamente testadas e não eram adequadas para impedir a propagação de chamas.
No dia 30 de dezembro de 1903, véspera do réveillon, o teatro estava com sua capacidade de 1.700 lugares, bastante ultrapassada. A estimativa era de que havia pelo menos 2.200 pessoas; a maioria, crianças. Pela falta de assentos, muitas pessoas resolveram sentar-se nos corredores, dificultando a saída e o deslocamento dos demais. Por volta das 15h, no início do segundo ato, um curto-circuito atingiu uma cortina altamente inflamável e o incêndio começou. Um funcionário tentou apagar as chamas com os frascos de Kylfire, mas rapidamente o incêndio atingiu o andar de cima e espalhou-se pelo teatro. As pessoas tentaram encontrar saídas de emergência, que, no entanto, ou estavam escondidas por tapeçarias, ou eram mal localizadas, ou ainda, possuíam um sistema de basculante desconhecido pela maioria das pessoas. A tentativa de abrir uma janela ampla, para ventilar o local, produziu uma enorme “bola de fogo” causando mais vítimas. Durante o incêndio, um ator mirim tentou controlar o pânico, subindo ao palco e pedindo calma à multidão.
Como resultado, houve 602 mortos e centenas de feridos. Foi o pior incêndio em um edifício na história dos Estados Unidos, até os dias atuais.
Assim, temos como causas principais para esse incêndio, os seguintes elementos:
Como medidas de segurança que passaram a ser adotadas nos Estados Unidos após esta tragédia, podemos citar a obrigatoriedade das barras de pânico nas saídas de emergência, a obrigatoriedade de que as portas de emergência abram para fora e que todo teatro passasse a ter uma cortina de asbesto ou cortina antichamas, testada antes do início dos espetáculos, para isolar o palco do público.
Como veremos mais a frente, essas mesmas causas de incêndio se repetiram muitas vezes ao longo da história, inclusive por ocasião da tragédia da boate Kiss, em Santa Maria, mais de 100 anos depois.
Em 1918, em Hong Kong, durante uma corrida de cavalos, um incêndio também foi responsável pela morte de pelo menos 618 pessoas, podendo ter chegado a 670 vítimas, além de centenas de feridos.
O hipódromo de Happy Valley realizava, à época, um evento anual de corrida de cavalos que atraía toda a sociedade local. As pessoas vestiam suas melhores roupas e era uma tradição o comparecimento em massa das famílias.
Havia um prédio principal onde ficavam as pessoas com maior poder aquisitivo e onde também estavam as arquibancadas e a cozinha principal, localizada no andar térreo. A construção era toda de bambu. O incêndio teve início nas dependências da cozinha, que rapidamente se alastrou, provocando o colapso dos prédios. Não havia equipamentos de proteção contra incêndio e nem saídas de emergência. Havia aproximadamente 10.000 pessoas no local. Não havia uma única construção, mas várias delas, com capacidade cada uma de cerca de 300 espectadores. O fogo e a fumaça no entanto rapidamente tomaram conta do local. Havia cerca de 50 policiais designados para a segurança, dos quais apenas 8 estavam próximos à pista de corrida e nenhum voltado para fiscalizar as condições de segurança das instalações.
Causas do incêndio:
Em 1942, na cidade de Boston, uma nova tragédia seria conhecida. Eram anos difíceis, em plena II Guerra Mundial, e um bar que oferecia espaço para as pessoas ouvirem música, namorar e dançar, era conhecido na região. Chamava-se Cocoanut Groove e havia pertencido, anteriormente, a pessoas ligadas ao crime organizado e o dono mantinha estreitos laços de amizade tanto com a máfia, como com o prefeito da cidade. O ambiente do clube noturno era caribenho. Para isto, havia muitas palmeiras artificiais, de plástico, assim como, cadeiras e mesas de bambu e outros materiais que remetiam ao Caribe.
Naquele ano, o feriado de Thanksgiving Day (Ação de Graças), a mais popular celebração americana, depois do Natal, havia sido comemorado no dia 26/11; dois dias antes do incêndio, que ocorreu no sábado, dia 28/11. O local tinha capacidade máxima de 460 pessoas, mas naquela noite havia próximo ou mais de mil pessoas. O ambiente era refinado e muitas pessoas da sociedade frequentavam o local. Uma das vítimas fatais naquela noite foi o ator de Hollywood, famoso por filmes de western, Buck Jones.
Por causa da guerra, era necessário que as luzes externas estivessem sempre apagadas (blackout), com vistas a evitar um ataque aéreo do inimigo. Os Estados Unidos ainda estavam traumatizados com o ataque surpresa ocorrido em Pearl Harbor, menos de um ano, antes (dezembro de 1941), quando milhares de americanos foram mortos, por aviões japoneses.
Assim, a decoração da boate não era perceptível na área externa, mas o interior estava bastante decorado, com muitas luzes, enfeites de plástico e papel e embora estivesse muito bonita, também era bastante inflamável.
Muito se especulou sobre a causa imediata do incêndio, mas a versão mais aceita foi a de que durante uma apresentação musical, um dos frequentadores, na vontade de criar um clima mais intimista, teria tirado uma das lâmpadas de uma luminária, escurecendo o local onde estava namorando. Na tentativa de ser recolocada a lâmpada, um rapaz de 16 anos, deixou-a cair e teria acendido um fósforo para enxergar. A lâmpada foi recolocada e o fósforo apagado. Minutos depois, no entanto, fumaça e fogo foram vistos próximos ao local, fazendo com que acredite-se que o incêndio tenha tido origem nesse episódio, embora alguns dos presentes tenham negado.
Houve grande pânico na tentativa de fuga. O fogo rapidamente se alastrou, sobretudo pela quantidade enorme de material plástico, que produz fumaça extremamente tóxica. As saídas de emergência não existiam em quantidade adequada e a maioria delas estava fechada, obstruída ou camuflada sob a decoração. O dono da casa noturna havia bloqueado as saídas para evitar que pessoas pudessem entrar no local sem pagar. A maioria das pessoas tentou sair por onde entrou; um comportamento comum em incêndios em locais fechados. A porta da entrada, contudo, era giratória, impedindo as pessoas de saírem e uma pilha de corpos foi encontrada no local.
Outras poucas saídas que estavam desbloqueadas e que poderiam ter sido utilizadas, abriam apenas para dentro, dificultando a rápida evacuação. O resultado foi a morte de 492 pessoas e centenas de feridos. Como veremos mais a frente, os incêndios ocorridos no clube noturno The Station (2003 – RHODE ISLAND), na República Cromagñon (2004-Buenos Aires) e na Boite Kiss (2013-Santa Maria) são praticamente a cópia dessa tragédia. Causas parecidas e problemas semelhantes.
Como consequência desse incêndio, além da obrigatoriedade de barras de pânico, nas portas, houve uma grande evolução no tratamento de queimados a partir de então. À época, o principal hospital utilizado para receber os feridos, era o Boston Memorial Hospital, o mesmo que socorreu as vítimas do atentado a bomba ocorrido em 2013, na maratona de Boston. O atendimento a queimados era feito com curativos a base de ácido tânico, o que foi substituído, naquela noite, por compressas de gaze embebidas em um gel derivado de petróleo, utilizado até os dias atuais. Houve grande avanço no atendimento intensivo na área de ventilação (muitas vítimas morreram em decorrência de intoxicação ou queimaduras pulmonares), foi a primeira vez que a penicilina era utilizada em larga escala no meio civil, bem como a primeira vez que um banco de sangue era utilizado para o atendimento de incidente de massa.
Logo após o término da II Guerra Mundial, havia uma ansiedade muito grande para que “tudo voltasse ao mais normal possível”. Isso incluía a reconstrução das áreas destruídas, bem como a realização de eventos e a participação do público. A Inglaterra em particular foi duramente atingida durante a guerra.
Assim, em 9 de março de 1946, em Burden Park, Manchester, na Inglaterra, uma partida de futebol atraiu milhares de pessoas; cerca de 85.000 torcedores. O estádio não estava esperando e nem preparado para receber tanta gente. Assim, pouco tempo depois de iniciado o acesso dos torcedores e a entrada de um grande número de pessoas, o sistema de roletas foi deixado de lado e muitas pessoas passaram a entrar de qualquer jeito. Rapidamente o estádio estava com a sua capacidade máxima ultrapassada e como ocorre com frequência nessas situações, houve o desabamento de uma parte do estádio, causando 33 mortes e centenas de feridos.
O jogo foi suspenso, as vítimas retiradas do local e apesar da tragédia, a partida foi reiniciada, mesmo sem qualquer condição de segurança, terminando empatada em 0 a 0. Veremos que mais tarde na história, situações semelhantes se repetiram. Não é difícil encontrarmos quem advogue que em situações como esta, o melhor realmente é seguir com a partida, pois a suspensão do jogo poderia causar tumultos e novas vítimas.
Esse tipo de afirmação não encontra respaldo nem na literatura especializada e nem na história, muito pelo contrário. Se houve uma tragédia, alguma coisa está errada. E se já aconteceu uma situação crítica, as chances de que seja agravada são ainda maiores. O correto, nestes casos (não estamos falando agora em prevenção, mas sobre algo que já aconteceu), é informar aos presentes o que está acontecendo, pedindo calma e as melhores rotas de evacuação (que devem de fato existir e estarem desobstruídas).
Informe também que o jogo será remarcado e que todos os presentes poderão acessar o novo jogo sem precisar pagar novo ingresso. Informe ainda, que a partida está sendo encerrada diante da necessidade de socorro de feridos e em razão da insegurança do local. Em situações como esta, onde o risco está na superlotação e parte do estádio comprometida, mas sem que haja um incêndio ocorrendo ou o risco de desabamento do local, pode-se perfeitamente proceder à evacuação do estádio com calma. Se o jogo envolve torcidas rivais, deve-se proceder a evacuação seletiva, liberando-se os torcedores de tal forma que não haja confronto. Se necessário reforço policial deve ser providenciado. No caso, de Bradford, o número de policiais era muito inferior ao necessário.
Os fãs de automobilismo certamente conhecem o chamado circuito de Le Mans, na França, onde anualmente, desde 1923, ocorre a prova das 24 horas de Le Mans, uma competição de resistência para os competidores. Em 1955, contudo, ocorreu a maior tragédia de todos os tempos, com 83 mortos e cerca de 120 feridos.
A plateia acompanhava a corrida, em diversos pontos, mas a grande maioria dos espectadores estava na arquibancada localizada na “reta” principal e foi justamente nesse local que, em decorrência de uma colisão em alta velocidade, um dos carros “voou” para cima da multidão, atingindo as pessoas com peças do automóvel e pedaços da estrutura do local que agiram como verdadeiras guilhotinas para algumas vítimas. Para piorar a situação, um incêndio teve início, com o fogo envolvendo metais, como o magnésio, que requer conhecimento especializado para o combate às chamas. Contudo, os bombeiros no local não tinham experiência e nem treinamento adequado para este tipo de extinção de incêndio, provocando demora considerável e agravando a situação.
Os organizadores da prova optaram por continuar com a disputa, para evitar que os espectadores, ao deixarem o local, pudessem congestionar as ruas e rodovias ao redor do autódromo e com isso, prejudicar o deslocamento de socorro. Agiram certo? Depende. Era uma situação diferente da do estádio de Burden Park. Não havia superlotação e nem problemas com as saídas de emergência. De fato, a saída dos espectadores poderia retardar o socorro, em virtude de não haver estradas largas no local.
A questão de decidir quanto à continuidade ou não de um evento, diante de uma tragédia, deve levar em conta diversos fatores:
O ano era 1961. A cidade, Niterói-RJ. Àquela época, os circos sempre atraíram multidões por onde passavam e era comum que chegassem às cidades, onde ficariam alguns dias ou semanas, fazendo um desfile no local, com a presença das principais atrações. Não foi diferente em Niterói, quando o Gran Circo Norte-Americano chegou à cidade, estreando em 15 de dezembro de 1961. Tinha como atrações diversos animais, como elefantes, girafas, leões, tigres, ursos, além de artistas de diferentes localidades. No dia da estreia, o circo estava tão cheio que houve necessidade de suspensão da venda de mais ingressos.
O dia 17 de dezembro daquele ano, era um domingo, dois dias após a estreia, era um dia quente que atraiu centenas de pessoas, sobretudo crianças para o espetáculo daquela tarde (matinê). O local estava completamente lotado, com a capacidade máxima de 2.500 pessoas atingida.
Por volta das 15:34h, já nos momentos finais da apresentação, quando um trio de trapezistas iria se apresentar, o grito de “fogo” foi ouvido e rapidamente as pessoas começaram a correr, tentando escapar. Como já vimos no teatro Iroquois, em Chicago, e no Cocoanut Grove, em Boston, não havia saídas de emergência e as pessoas buscavam sair pela mesma porta de entrada, fazendo com que muitos morressem pisoteados, bem como intoxicados pela fumaça que rapidamente tomou conta do local.
Como é de se esperar em um incêndio em um circo, não demorou para que a lona em chamas desabasse sobre as pessoas em fuga. O desespero de uma elefanta que saiu em disparada, abrindo um enorme buraco na lona, acabou salvando vidas, pois diversas pessoas conseguiram sair por ali. Não havia equipamentos de extinção de incêndio adequados e apesar dos donos do circo terem feito propaganda sobre a lonam, que seria resistente ao fogo, a tragédia mostrou que não era bem assim.
Para piorar a situação, o hospital mais próximo estava em greve e não havia à época, a ponte que liga o Rio de Janeiro à Niterói. A causa do incêndio foi criminosa e motivada por vingança. É muito comum que os circos contratem pessoas locais para ajudarem na montagem da estrutura e para trabalharem temporariamente, durante a permanência do circo na cidade. Uma dessas pessoas foi contratada, mas rapidamente demitida por ter um comportamento que não era adequado para o trabalho a ser feito, causando problemas. Ele tentou entrar no circo durante a estreia, sem ingresso, e foi impedido, jurando vingança.
O resultado do incêndio foi a morte de 503 pessoas (saldo oficial), onde pelo menos 70% eram crianças e centenas de feridos.
Muitas pessoas desconhecem esse incêndio, até mesmo moradores de Niterói. Um jornal famoso no país, ao entrevistar pessoas da cidade sobre as lembranças do incêndio ou mesmo para que pudessem indicar o local onde o circo havia se instalado, teve muita dificuldade em encontrar quem de fato se lembrava da tragédia e um dos entrevistados resumiu bem porque o Brasil tem tanta dificuldade em atuar na prevenção e na preparação para desastres. Segundo a moradora entrevistada, as tragédias devem ser esquecidas. Nada mais equivocado do que esta afirmação. Este tipo de pensamento é o que leva à ocorrência de novos desastres.
Em 24 de maio de 1964, ocorreu a maior tragédia em estádios de futebol, quando 312 pessoas morreram e centenas de pessoas ficaram feridas, durante a partida entre a seleção do Peru e a da Argentina, pelas eliminatórias das Olimpíadas. O estádio estava superlotado e o jogo ocorria no Estádio Nacional de Lima, no Peru. Faltando dois minutos para o fim da partida, um gol peruano foi anulado, quando a Argentina vencia por 1 a 0. Houve invasão de campo com o objetivo de agressão ao árbitro, contida pela ação policial que incluiu cães, seguida de uma confusão generalizada. Havia poucos policiais no estádio e muitas portas de saída e/ou de emergência estavam fechadas.
Na tentativa de se conter o tumulto, a polícia resolveu agir da pior forma possível, usando gás CS (lacrimogêneo) contra uma população que não tinha para onde correr e nem fugir. À medida que os torcedores conseguiram sair, houve um distúrbio violento na cidade, com o uso exagerado da força por parte da polícia, segundo informações da imprensa, com relato de mortes e ferimentos por arma de fogo decorrente de disparo realizado pelos policiais. Na contagem oficial de mortos, contudo, não foi incluída nenhuma por arma de fogo, o que levou muitas pessoas a acreditarem que o número de mortos tenha sido subestimado. Esta foi a pior tragédia em estádios de futebol, até o momento.
Em 1968, no que ficou conhecido como a “tragédia da porta 12”, 71 pessoas morreram e 150 ficaram feridas durante um jogo de futebol entre os times mais rivais da Argentina, Boca Juniors e River Plate, no estádio Monumental (do River). Na metade do segundo tempo, a torcida visitante (Boca Juniors), localizada próxima ao portão número 12, ao tentar deixar o estádio, teve grande dificuldade em sair por razões que não foram completamente esclarecidas. Uma das versões é de que havia catracas na frente do portão enquanto outras testemunhas afirmam que a saída estava fechada. Houve grande tumulto e as pessoas se comprimindo umas às outras. A repressão policial agravou a situação, que produziu vários mortos e feridos. O estádio estava completamente lotado.
Alguns anos mais tarde, uma grande tragédia abalaria o mundo. Uma boate lotada de jovens, com capacidade acima do permitido, sem saídas de emergência adequadas, sem equipamento de extinção de incêndios, forrada com espuma altamente tóxica e inflamável, incendiou-se em poucos minutos, após um dos integrantes de uma banda que se apresentava ao vivo, utilizar-se de fogos de artifício durante a sua performance. Foram mais de 100 mortos.
Não estamos falando da boate Kiss, mas da Station, em 2003, em Long Island, nos Estados Unidos. Percebam como todos os elementos que causaram o incêndio, 10 anos mais tarde, na boate Kiss, estiveram presentes nessa tragédia. Vejam como é fundamental conhecer o passado para não repetir os mesmos erros no futuro.
O incêndio da casa noturna “The Station” foi filmado desde os primeiros instantes por quem estava dentro e conseguiu se salvar. O vídeo tem cerca de 12 minutos e podemos ver que os bombeiros chegaram em cerca de 4 minutos após o início do incêndio, no entanto em poucos minutos as chamas já haviam tomado completamente o local.
É difícil acreditar que as lições não foram aprendidas. Há algumas autoridades que simplesmente não acreditam que tragédias podem ocorrer em qualquer lugar. Depois do ocorrido em 2003, na boate Station, era para ser proibido em qualquer lugar do mundo, o uso de fogos de artifício em locais fechados, bem como não ser permitido o funcionamento de estabelecimentos sem as saídas de emergência devidamente operacionais (instaladas, sinalizadas e em quantidade e local adequados), bem como a instalação de equipamentos de incêndio compatíveis com o local, o que inclui sprinklers no teto, que é um sistema que ao detectar a presença de calor no ambiente, dispara jatos de água. Existem leis para tudo o que foi acima descrito (ou quase tudo), mas os estabelecimentos não são devidamente fiscalizados, há a certeza da impunidade, bem como a corrupção, ainda plenamente presente em muitos casos.
Pois bem. Um ano depois do ocorrido em Long Island, uma tragédia quase idêntica ocorreu em Buenos Aires, Argentina, na casa noturna República Cromagnon. Todos os elementos estavam presentes: superlotação, saídas de emergência bloqueadas, uso de artefato pirotécnico no interior do local, superlotação, ausência de equipamentos de combate a incêndio. O resultado foi a morte de 194 pessoas, na maioria jovens, às vésperas do Ano Novo. Houve cerca de 1432 feridos e a maior parte das mortes se deu por asfixia.
O ano de 2013 iniciou com uma grande tragédia no país. Em 27 de janeiro daquele ano, um clube noturno superlotado (jovens na maioria) incendiou-se, matando 242 pessoas e ferindo outras centenas. Esse incêndio é quase uma cópia de outros ocorridos anteriormente, alguns dos quais estudados nesse capítulo. Teve, por exemplo, praticamente as mesmas causas e problemas encontrados na boate The Station (2003), em Rhode Island, USA e a República Cromagnon (2004), em Buenos Aires, Argentina. Mas também, o incêndio no Wuwang Club (China), em 2009, com 43 mortos e 88 feridos, no Santika Club, em Bangkok (2009), com 66 mortos e mais de 200 feridos (a causa oficial não foi reconhecida, mas tudo indica que foi decorrente do uso de fogos de artifício no interior da boate), bem como na Lame Horse, também em 2009, na Rússia, com 150 mortos e mais de 160 feridos.
O incêndio na boate Kiss foi uma tragédia anunciada e as autoridades sabiam que poderia ocorrer a qualquer momento, uma vez que a casa noturna não possuía alvará de funcionamento. Ainda assim, funcionava normalmente. No dia do incêndio, estava superlotada, com um forro de espuma bastante tóxico e inadequado para o local, conforme relatado por especialistas. Não dispunha de sistema de sprinklers para o combate a incêndios e os extintores existentes ou não funcionavam ou eram insuficientes. Não havia sinalização de emergência e apenas uma saída, mal iluminada. A causa do incêndio foi o uso de fogos de artifício pela banda que se apresentava no local. Os elementos pirotécnicos utilizados são completamente inadequados para serem utilizados em ambiente fechado. Em minutos, uma fumaça negra e tóxica já havia tomado conta de todo o estabelecimento e sem luz, as pessoas buscavam fugir em pânico.
Todas as cidades, ainda mais do porte de Santa Maria, devem possuir planos de emergência e desastre. Não há justificativa para que não estejam atuando na prevenção e preparação de tragédias como a que foi verificada. Ficou evidente nesse episódio, conforme as investigações demostraram, que claramente houve falhas graves na prevenção e na fiscalização da boate. Como consequência, foi solicitado o indiciamento de 8 bombeiros. No campo da preparação, é um absurdo que uma cidade com mais de 200.000 habitantes não possua bombeiros de plantão, em quantidade e com recursos que sejam adequados ao porte da cidade.
O mais grave é sabermos que na região há o comando da 3 Divisão do Exército, com milhares de militares, bem como uma base área da Aeronáutica, que dentre as diversas unidades, possui uma destinada ao combate de chamas, que inclusive auxiliou no socorro. Por que este comentário? Porque se os bombeiros não possuem pessoal e nem recursos, mas estão em uma área com grande presença de unidades militares, é fundamental que exista um planejamento de pronto-emprego para auxílio em situações de incidentes com múltiplas vítimas e desastres.
As Forças Armadas por diversas vezes já demonstraram sua capacidade e vocação para auxílio do poder público em situações críticas e com certeza podem e devem fazer parte de um planejamento desta natureza. Essa cooperação ficou clara e se mostrou efetiva nos dias seguintes à tragédia, mas teria sido muito bom, que pudesse também ter ocorrido durante o resgate e que possa ser parte de um planejamento para evitar novas situações futuras.
Será que a partir de agora, tudo irá mudar e novas tragédias como essas deixaram de acontecer? Infelizmente, é pouco provável se tomarmos como exemplo o que de fato mudou após a tragédia. Para que possa haver uma diferença na política de prevenção, preparação e resposta é fundamental que haja profissionais devidamente capacitados, planejamento bem realizado e, sobretudo, que as lições passadas não sejam esquecidas.
O ano de 2013 ainda foi palco de outra tragédia. Durante a maratona de Boston, nos Estados Unidos, um atentado terrorista provocou a morte de três pessoas, incluindo uma criança e cerca de 260 feridos, muitos em estado grave. O atentado foi perpetrado por dois irmãos, mulçumanos, de origem chechena, que residiam nos Estados Unidos e inspirados por crenças extremistas islamistas.
Foram utilizados dois artefatos explosivos, improvisados em panelas de pressão, deixados dentro de mochilas, colocadas próximas à linha de chegada, programadas para explodir com pequena diferença de tempo entre elas. A crueldade do atentado, ainda foi maior, uma vez que foram colocados pregos junto aos explosivos e as mochilas colocadas no chão, de tal forma que com a explosão, muitos ferimentos foram provocados nos membros inferiores dos atletas (corredores), tendo ocorrido diversas amputações. As consequências só não foram ainda mais graves, porque havia muitos médicos e outros profissionais de saúde no local, em barracas destinadas ao atendimento das ocorrências da maratona e em razão de Boston ser uma cidade referência na área de saúde e especialmente preparada para lidar com desastres e atentados. Cerca de 27 hospitais foram mobilizados para atender as vítimas do ataque, incluindo o Massachusetts General Hospital, o mesmo utilizado no atendimento das vítimas do incêndio do Cocoanut Grove em 1942.
Por ocasião da Copa das Confederações em 2013 e da Copa do Mundo em 2014, ambas no Brasil, foi montado um grande aparato de segurança, com proporções jamais vistas no país.
A abertura da Copa das Confederações foi marcada por manifestações em Brasília, à frente do Estádio Nacional, onde ficou evidente que, mesmo com todos os recursos materiais e humanos destinados para a segurança, houve grande falha na condução dos protestos.
Em toda democracia, é livre o direito de expressão e de manifestação. Assim, as pessoas devem ter amplo direito de demonstrarem publicamente seu contentamento ou protesto com relação ao governo e cabe à força pública, no caso, a polícia, assegurar que os manifestantes possam exercer esse direito, que é constitucional. Contudo, cabe também à Segurança Pública, definir onde as manifestações podem ocorrer, em que horário, local e até mesmo exigir que sejam previamente informados. Nada disso aconteceu. Nem os manifestantes tiveram o seu direito respeitado e nem a Segurança Pública foi previamente informada. Também não se sabe por que a inteligência não detectou o movimento. A condução da crise também foi mal conduzida, uma vez que no local havia muitas famílias e torcedores, e apesar dos manifestantes estarem muito próximos da entrada do estádio, o protesto era pacífico. Houve emprego da tropa de choque e da cavalaria com uso de gás lacrimogêneo e munição não letal, provocando vários feridos.
Nos dias seguintes, várias manifestações passaram a ocorrer em todo o país, por razões diversas, mostrando, contudo, um descontentamento generalizado com diversas questões, sobretudo com relação aos custos da realização da Copa do Mundo.
A primeira grande manifestação ocorreu dois dias após a abertura da Copa das Confederações e se deu em frente ao Congresso Nacional. Foi um evento de grande porte, do tipo espontâneo. Ou seja, não estava previamente agendado e contou com a presença de milhares de pessoas. As barreiras policiais contavam com poucos policiais diante do expressivo número de manifestantes que acabaram por ter acesso ao prédio do Congresso e ocuparam a área externa da Câmara dos Deputados, a rampa de acesso, incluindo as cúpulas. Foi por pouco que não houve uma invasão e confrontos com a polícia. Nos dias seguintes, a situação ficou ainda mais tensa em seguidas manifestações no país, com estimativa de público de até um milhão de pessoas, sendo as maiores registradas em São Paulo e Rio de Janeiro.
Nas manifestações em Brasília, as que reuniram as maiores concentrações de pessoas ocorreram em frente ao Congresso Nacional, onde em uma delas havia cerca de 60.000 pessoas. Com relação a essas manifestações em frente ao Congresso, posso falar de forma mais detalhada, pois estava à frente da coordenação de emergência. Havia uma preocupação muito grande com relação à proteção dos manifestantes, bem como dos policiais ali presentes. Muitos policiais estavam trabalhando seguidamente neste tipo de evento e o stress era visível. As provocações ocorriam com muita frequência, sobretudo por parte de pequenos grupos.
Havia uma grande multidão querendo realizar uma manifestação democrática e pacífica e um pequeno grupo de pessoas com o único objetivo de provocar baderna e confusão. Essas pessoas, com frequência, agrediam os policiais com palavrões, jogavam água em seus uniformes, bem como fogos de artifício. Foi montado um esquema de emergência que incluía, postos móveis com profissionais de saúde, em frente ao Congresso, na Chapelaria (que fica no subsolo e por onde entram os parlamentares), com retaguarda do serviço médico da Câmara dos Deputados e com o Posto de Comando e área de concentração de vítimas (triagem e atendimento) em local estrategicamente definido e coordenado pelo SAMU-DF.
Todas as vítimas que eram resgatadas pelos bombeiros eram transportadas para a área de triagem onde também recebiam o atendimento conforme a gravidade e transportadas para o Departamento Médico da Câmara dos Deputados, para realização de exames complementares e atendimento especializado, ou então, nos casos mais graves, eram removidos para os hospitais. O sistema de comando de incidentes foi parcialmente utilizado, dele fazendo parte os bombeiros, o SAMU e o departamento médico da Câmara dos Deputados. Nenhuma ocorrência grave sob o ponto de vista médico, que tenha requerido internação, foi verificada em todos os dias de manifestação. Sob a perspectiva da segurança, contudo, o ataque ao Palácio do Itamaraty com uso de coquetéis Molotov merece destaque, sobretudo pela agressividade dos manifestantes envolvidos no episódio.
Com relação à segurança, as áreas interna e externa do edifício do Congresso Nacional, em particular da Câmara dos Deputados, estavam a cargo da Polícia Legislativa, que empregou suas diversas unidades, incluindo a de controle de distúrbios, uma vez que, constitucionalmente, a responsabilidade legal pela segurança do local compete à polícia legislativa (da Câmara e do Senado). Policiais legislativos do Senado atuaram, em diversos momentos, de forma conjunta com os da Câmara. Um gabinete de crise foi instalado, contando com representantes de diversos órgãos de Segurança Pública, além da Câmara e Senado.
No controle do perímetro externo, fora da área de atuação das Polícias Legislativas, estava a Polícia Militar, que empregou na linha de frente, policiais da Companhia Independente do Congresso Nacional, com apoio e retaguarda do Batalhão de Polícia de Choque e do Regimento de Polícia Montada. O Detran estava a cargo do controle do trânsito.
Havia sempre a orientação para que o Batalhão de Polícia de Choque fosse usado apenas se estritamente necessário, o que de fato ocorreu em alguns momentos, sobretudo quando manifestantes passaram a utilizar fogos de artifício como armas. Algumas prisões foram realizadas e houve grande integração das unidades envolvidas.
Assim, em eventos de grande porte, quando espontâneos, é fundamental que haja o trabalho da inteligência para a identificação de manifestações, de tal forma a permitir ao gestor de crises e encarregados da Segurança Pública que definam juntamente com os organizadores da manifestação, os trajetos a serem seguidos, horários, locais permitidos e minimizar as chances de conflitos.
Todo e qualquer evento de grande porte, espontâneo ou eletivo (previamente agendado) deve possuir o Sistema de Comando de Incidentes implementado, em que todas as organizações envolvidas devem estar presentes em sua estrutura. A Defesa Civil deve ser parte ativa, em todos esses eventos. Infelizmente, no entanto, em diversos estados e cidades brasileiras, a Defesa Civil está desvirtuada de sua verdadeira função, que é, sobretudo, a de planejar, prevenir e preparar as comunidades e órgãos de segurança, para emergências e desastres. Defesa Civil não é órgão executor e muito menos cargo para ser usado com finalidades políticas.
As manifestações de junho de 2013, tiveram problemas em algumas cidades, sobretudo em decorrência do uso de balas de borracha, de spray de pimenta (OC) e de gás lacrimogêneo (CS). O uso dessas armas ditas não letais, deve seguir critérios bastante específicos. Por exemplo, como vimos em várias tragédias acima descritas, não se usa de forma alguma gases (nem pimenta e nem lacrimogêneo) em ambientes fechados ou em locais onde a multidão não tem como escapar ou se evadir. O risco de intoxicação passa a ser grande, assim como o de pânico, pisoteamentos, asfixia, dentre outras lesões. Tanto o gás lacrimogêneo como o de pimenta podem causar problemas respiratórios e alérgicos, dependendo da concentração e do tempo de exposição.
O uso deve ser restrito a situações (ao ar livre), por exemplo, onde há a tentativa de invasão de local não permitido (spray) ou para dispersar multidão (bomba de gás). Há países que não utilizam o gás de forma alguma. Há meios alternativos para a mesma finalidade, sem os mesmos riscos, como o uso de canhão de som, que emite um ruído sonoro bastante desconfortável e alto, de tal forma que ninguém à frente do canhão consegue ali permanecer. Mas, precisa também saber ser operado para que não cause lesões no tímpano.
O uso de balas de borracha deve ser empregado apenas para atingir os membros inferiores e tão somente quando na iminência de um ataque, ou seja, em legítima defesa. A ideia de disparos aleatórios contra manifestantes é absurda, assim, como a curtas distâncias (pode ser fatal) e jamais direcionado para o abdome, tórax ou cabeça. Há países que não as utilizam de forma alguma. Contudo, bem indicado, pode ser útil em situações específicas.
Casos em que o policial sai de formação e corre em perseguição a um manifestante, demonstra falta de controle e não deve jamais ser tomado como um procedimento a ser seguido. Nessas situações, o policial se coloca em risco desnecessário, compromete a formação e se alcança o manifestante, pode agir com força desmedida. Para essa finalidade, deve existir nas tropas de Choque as chamadas equipes de busca e apreensão, que visam detectar e deter os agitadores ou que estão realizando ataques. Em alguns países, são empregadas equipes com filmadoras que registram os ataques e posteriormente realizam a identificação dos agressores, possibilitando a prisão.
Ou seja, não basta ter equipamentos ou armas ditas não letais, se não é seguido um protocolo internacional para emprego, de acordo com o escalamento de força (force continnum) e sempre com a lembrança de que, embora o risco seja menor, ainda assim, as armas ditas não letais podem provocar mortes e lesões graves, sobretudo se mal empregadas. Da mesma forma, policiais devem ser rigorosamente treinados antes de participarem de controle de distúrbios, principalmente para que não reajam a provocações.
A Copa do Mundo foi realizada em junho e julho de 2014. Sob o ponto de vista da segurança, foi um sucesso?
Há diversas formas de se responder a essa pergunta. A primeira delas é com base nos resultados. De uma forma geral, houve algum episódio grave que tenha sido registrado, que tenha colocado em risco a vida dos atletas ou dos espectadores nos estádios? Não. Então podemos concluir que o sistema foi adequado? Também não. Por quê? Só podemos afirmar que um sistema foi eficiente quando ele foi capaz de detectar, identificar e neutralizar uma ameaça. Nada indica que isso tenha ocorrido. Em outras palavras, se em uma empresa que nunca tenha tido um princípio de incêndio podemos afirmar que a brigada de incêndio é eficiente? Não. Porque o sistema de fato nunca foi testado. Podemos tão somente afirmar, sob este ponto de vista, que felizmente nada de mais grave aconteceu, o que pode ser comemorado, mas não autoriza ninguém a afirmar que o sistema foi adequado e deve ser referência para eventos futuros sem uma análise crítica. Não há nenhum registro e nem informação dos órgãos de segurança, que uma grave ameaça tenha sido detectada, identificada, neutralizada e explorada, que são os princípios da contralinteligência.
Vamos então analisar os preparativos e os sistemas preventivos. Sob este aspecto, devemos antes de tudo entender o que chamamos de prevenção.
Prevenção é um conjunto de ações que visa identificar e adotar medidas que visem diminuir (mitigar) as vulnerabilidades de um local frente a ameaças prováveis, possíveis e também as improváveis. Para isso são elaborados mapas de vulnerabilidade onde são relacionadas todas as vulnerabilidades existentes e confrontadas com as ameaças. Por exemplo. Qual o risco de um estádio em Brasília ser atingido por um tornado? É vulnerável a isto? Os engenheiros devem responder, identificando se a estrutura é suficientemente segura para enfrentar ventos que podem chegar a centenas de quilômetros por hora. A ameaça de tornado é possível? Sim. Brasília já teve tornados. É provável? Pouco provável. Qual o risco que essa ameaça possa ocorrer? É quando então é realizado o mapeamento ou inventário de riscos e medidas voltadas para a mitigação são apresentadas.
Por exemplo, em um caso como esse, há necessidade de verificarmos de que forma os serviços meteorológicos podem informar quanto à formação de nuvens que propiciam a ocorrência de tornados e com que antecedência. Com esta informação (tornado watching em inglês) podem ser tomadas medidas com vistas a proteger os espectadores. Você se lembra do que houve no estádio do Nepal, acima descrito, por causa de uma tempestade de granizo? Ainda nesta análise. E furacão? É possível? Não. Furacões só ocorrem sobre o mar e quando atingem a terra, perdem muito a sua força, transformando-se rapidamente em tempestade tropical. Nesse caso então, furacão não é uma ameaça para Brasília. Entenderam o raciocínio?
A questão é que, com relação à Copa do Mundo, o terrorismo era uma ameaça extremamente importante que precisava ser levada em consideração e o sistema preparado para a detecção, identificação, neutralização e exploração de qualquer elemento que pudesse estar relacionado com tal ameaça. Aí começam os problemas. O Brasil não tem uma lei que puna o terrorismo. Não é um crime previsto no código penal, apesar de o país ser signatário de diversos acordos e convenções internacionais e da própria Constituição Federal afirmarem que o crime é imprescritível. Mas que crime se ele não existe no código penal? É preciso, antes de tudo, chegar a uma definição do termo. Como combater algo que não se sabe o que é? As medidas voltadas para a prevenção dos ataques são chamadas de antiterrorismo, enquanto aquelas voltadas para o combate a terroristas já identificados e que estão em curso de uma operação ou ataque, chama-se contraterrorismo. As autoridades se apressaram em apresentar unidades policiais dessa natureza, como se fosse esta a linha principal de defesa contra ataques. Países com excelentes unidades contraterroristas são por vezes atingidas por ataques, pelo simples fato de que o mais importante elemento contra esse tipo de violência é obtido pela Inteligência, o que implica em legislação adequada, integração das agências, bem como compartilhamento de informações com governos aliados.
Em pelo menos dois episódios, tivemos sinais claros de que algo não esteve bem e que poderia ter resultado em um problema mais grave, apesar de todo o aparato policial. O policiamento ostensivo funciona bem para inibir ações criminosas comuns, como furto, roubo e eventualmente o tráfico de drogas, mas para o combate a crimes mais complexos, não. O conhecimento e detecção pela população, de elementos que podem ser suspeitos de uma movimentação terrorista, requerem treinamento e campanhas voltadas para esta finalidade.
Foi dessa forma que vendedores de rua, sinalizaram para policiais em New York, que uma atividade suspeita estava ocorrendo em uma van, no movimentado Times Square e de fato, um atentado foi descoberto e abortado. Policiais precisam ser exaustivamente treinados no reconhecimento desses sinais. Os policiais brasileiros estão treinados para isto? Foram orientados como identificar tais sinais? E os hospitais? Os profissionais de saúde foram treinados para o recebimento de vítimas de atentados, incluindo os que possam envolver substâncias químicas e/ou radioativas? Treinamento não é fazer uma palestra ou colocar um folder. Isso também é importante, mas vai muito mais além. Os simulados foram realmente realizados para identificar os erros do sistema de resposta ou apenas uma representação teatral para mostrar para a população e autoridades de que estava tudo bem? Simulado onde tudo dá certo, deve ser realmente colocado sob suspeita. O imponderável sempre ronda eventos críticos.
Pois bem. Me referi a dois episódios que poderiam ser críticos, mas gostaria de acrescentar mais um. Foi amplamente divulgado pela imprensa e confirmado posteriormente pelas autoridades, que na cerimônia de abertura da Copa de 2014 houve uma situação potencialmente crítica, decorrente de um erro de comunicação inadmissível, quando um atirador de elite da Polícia Civil, ao perceber a presença de um policial militar em uma área não autorizada, próxima às autoridades, pensou estar diante de um possível criminoso ou terrorista.
Ao entrarem em contato com a central, solicitando autorização para neutralizar a ameaça, houve a informação de que nenhum policial militar estava autorizado a estar ali. Felizmente alguém reconheceu que se tratava de um policial e ao se buscar mais informações, foi dito que ele estaria ali para apurar uma possível ameaça de bomba. Ou seja, podemos dizer que foi um sucesso porque o policial militar não foi atingido? E que protocolo é esse que um policial vai sozinho, verificar uma possível ameaça de bomba em um estádio lotado, sem que a central de controle tivesse sido avisada? Bom, estou comentando em cima de fatos que foram publicados pela imprensa e que não foram negados pelas autoridades, no que diz respeito ao erro de comunicação existente (FOLHA DE SÃO PAULO, 2014).
Em outro episódio, foi relatado que um argentino, que deveria ter sido proibido de ingressar no país e mais ainda em estádios, teria sido preso pela polícia, mesmo estando usando máscara. Ele seria um membro violento de torcidas organizadas e que poderia trazer risco para os espectadores. De fato ele foi preso. O problema é saber como ele entrou no Brasil e como teve acesso aos estádios (ele ficou postando imagens nas redes sociais antes de ser preso, desafiando a polícia, deixando claro que se disfarçava para entrar nos estádios). Felizmente foi preso, mas já dentro de outro estádio (BONFANTI, 2014). E se fosse um terrorista?
O terceiro episódio que merece ser comentado é o referente à invasão de torcedores chilenos ao Maracanã, pouco antes do jogo entre as seleções de Espanha e Chile. Cerca de 100 chilenos que estavam sem ingresso invadiram o centro de imprensa, alcançando outras áreas (COELHO, 2014). A pergunta é: e se fossem criminosos? E se fossem terroristas?
A segurança e o atendimento médico dentro do estádio eram terceirizados. Houve treinamento conjunto com os órgãos de Segurança Pública na eventualidade de um desastre ou atentado? Se houve, com que antecedência? Como foi este treinamento?
Houve outras invasões e outros problemas. Um grande problema no Brasil é que há uma séria dificuldade por parte das autoridades e das organizações em realizar a autocrítica, como também em perceber na crítica, uma oportunidade de melhora para eventos futuros. O que vemos com frequência é que se tudo “deu certo” então o modelo funciona, não precisa ser modificado e está pronto para o próximo evento. Você como especialista em segurança de eventos de grande porte, não caia nessa tentação e armadilha ao mesmo tempo.
A vaidade e o orgulho não combinam com a gestão de segurança. Aceitem as críticas e sempre, mas sempre mesmo, façam reuniões de avaliação após os eventos , sejam críticos e convidem pessoas de outras áreas para que apontem também as críticas. Só dessa forma, o sistema pode ser de fato melhorado.